ENTREVISTA COM SEU EMÍLIO
Nome: Emílio Lopes de Oliveira
Idade: 59 anos
Aldeia: Pedra Redonda
Data: 30/07/2010
- O SENHOR PODE ME FALAR UM POUCO DE SEUS PAIS?
Meu pai, minha mãe e meu avô foi nascido no Riachinho. Minha avó por parte do meu pai morava no Brejo, mas minha família toda era do Riachinho. Agora, meu pai é filho do meu avô, mas o pai da minha mãe é filho de um Caiapó. Ele é filho de uma mulher solteira. Na época, os índios Caiapó passaram por aqui, aí engravidou uma Leopordina, que é a minha bisavó. Ela era uma mulher solteira, que nasceu meu avô. Aí eles foram embora e largaram ela aí, gorda. Depois nasceu um menino, então ele tem o nome de Felipe Pó. Então ele é Felipe Lopes da Rocha Pó, porque ele é filho dos Caiapó. Então nós temos uma racinha dos Caiapó, lá do Pará. É uma misturinha.
- COMO ERAM AS MORADIAS E AS LAVOURAS?
As moradias, nessa época, tudo era de capim, era uma cabana de capim, casinha de beira no chão. Assim quando eu conheci, quando meu pai morreu, deixou nós numa casinha no Riacho Comprido, numa casinha coberta de capim agreste, rapado no tabuleiro, aí minha mãe não quis ficar lá. Ele morreu aqui na nossa casa, que era de casca de pau.
- TINHA O PAU CERTO PARA TIRAR AS CASCAS?
Tinha. Tinha o pau d’arco, que tinha muito nessa época. E tem ainda. Todos eles tinham casa de capim, aí foi tirando as cascas e vendendo para eles de lá, que não queriam arrancar mais capim, aí ia fazendo de casca também. É dessa maneira o trabalho nosso naquele tempo.
- E PLANTAVA QUAIS TIPOS DE PLANTAS?
Plantava mais era milho, algodão, mamona e mandioca. A gente ganhava uns centavos era de algodão e mamona. O milhozinho a gente só plantava a conta de comer. Ele todo ia pro pilão para tirar a farinha, a canjica. Ninguém tinha arroz. O arroz nosso era do milho. A situação nossa era assim, dessa maneira. A panela nós não tínhamos. A panela era de barro, que nós fazíamos, não conhecia nem panela, nem nenhuma outra coisa de ferro. Os pratos eram as cuias, quando não fazia de barro mesmo para por a farinha e por até mesmo a comida, ou as gamelinhas de pau que fazia para comer. E naquele tempo, os homens eram separados das mulheres, as mulheres cozinhavam na panela e botavam numa gamela para o pai comer junto com os filhos. E outras para as mães com as filhas. Sentava o pai junto com os filhos e a mãe junto com as filhas. Todos comiam com a mão. A botadeira da comida era a chefe, que era a mulher.
- CONTE UM POUCO SOBRE O DOCUMENTO SOBRE A TERRA
A história do documento da terra. Nós, quando começamos, já tinha documento. Mas nós, aqui mesmo, não tínhamos o documento. Estava tudo no cartório. Nós não sabíamos nem onde estava nem que tinha uma doação. Quando o finado Jeromo morreu, o finado Pedro Jeromo, que era o filho dele, tomou conta do seu chefe. Ele pegou a doação, aí quando Pedro morreu, o Zé Catiano pegou a doação e dessa doação começou a guerra da terra. Porque ele pegou a doação e espinicou (consumiu) e nós ficamos sem nenhum documento. O documento que nós tínhamos era esse, que passou para a mão do finado Jeromo, que passou para o filho, do filho para o genro, e aí desapareceu o documento. Aí para nós ficou ruim. Foi a luta da terra, mas estava sem documento. Esse Zé Catiano correu atrás, mas não deu conta. Não deu conta porque essa Ruralminas foi ele que trouxe, através da sumida desse documento, querendo fazer venda de terra. Aí sumiu o documento. Aí fomo em riba, fomo embaixo, em busca desse documento. Aí já alcançamos o Rodrigo, que começou a mexer com esta terra. Ele andava sem documento nenhum. Aí a gente fez um trabalho. O primeiro documento que fez aqui foi a dança do Toré. Fez uns retratos e aí registramos. Dançamos o Toré que estava escondido, aí juntamos um grupinho da família e fomos e levantamos um terreiro, e fizemos a dança. Ainda bem que ainda tinha a imagem do Toré. Nós pegamos as coisas de lá, a mênsia, que fazia junto o grupinho que ainda entendia um pouco. Aí fomos, tiramos uns retratos. Esses retrato foi um dos primeiros documentos. O povo não acreditava que tinha índio aqui. Aí quando ele levou, eles acreditaram. Aí falou: “Ó, tem mesmo”. Aí mostrou a Jurema, que quem usa a jurema são só os índios. Essa cultura.
Aí ficamos sem documento e fomos lutando. Caminhando, caminhando, sem saber o que ia fazer. Juntava um dinheirinho, mas ninguém tinha coragem de viajar com ele (Rodrigo). A gente vendia uma galinha e dava a ele o dinheiro e ele ia viajando. Ele morava lá no Barreiro. Nesse tempo que ele começou, ele tinha casado naquele ano, que ele chegou do Paraná. Aí quando ele chegou que viu o povo tomando as terras. Ele tomou essa providência de viajar. E arrumou uns companheiros que foram Maroto, o primeiro, e Zeca de Bião. Mas Maroto já tinha sido furado de faca. Miguel de Mariano tinha dado uma facada nele. Já tinha problemas e só fez uma viagem. Quando ele chegou, logo ele morreu. Era difícil a caminhada, caminhava muito a pé para pegar o carro. Aí o Zeca foi mais ele em outra viagem. Mas ele estava viajando mais era sozinho. E nunca arrumava jeito de provar se ele estava interessado pela comunidade ou se era para ele sozinho. A justiça era desconfiada. Foi aí que ele arrumou Laurindo para ir com ele. Aí foi que eles arrumaram logo, da primeira vez. Logo da primeira vez, a Ruralminas ofereceu para eles um casa boa e uma fazenda lá para eles largarem de mexer com isso. Logo estavam interessados. Aí Laurindo aceitou isso. É bom largar isso pra lá. Já Rodrigo disse: “Laurindo, eu estou vindo aqui com dinheiro de todo mundo. Eu não vou fazer isso”. E não aceitou.
Da outra viagem, ele já não quis levar o Laurindo. Aí, quando ele foi, já combinaram que já estava mudando para a FUNAI, que era SPI na época. Quando ele mudou para a FUNAI, aí chegou o coronel Brox. Não era daqui não. Eu nem sei como esse homem chegou aqui. E ofereceu para ele arrumar o documento que ele sabia onde estava. Que estava no Rio de Janeiro. Aí ele foi e tirou uma cópia dele e trouxe e passou para nós. Aí foi que nós avançamos na luta da terra. Mas nós já tínhamos a história dela de cabeça. Como que ela foi feita. A história da doação que tinha. Eu deixei uma cópia dele lá em Montes Claros, quando eu morrer, se precisar, é só ir lá, que tem uma cópia lá.
- CONTA UM POUCO DA HISTÓRIA DA DOAÇÃO DA TERRA QUE O SENHOR SABE DE CABEÇA. QUEM FEZ ESTE DOCUMENTO E POR QUE FEZ?
A doação foi feita na igreja de Matias Cardoso. E quem registrou ela foi Januário Cardoso Brandão, que era o escrivão do Cartório. Foi registrado lá por Dom Pedro II e Princesa Isabel. Porque aqui Dom Pedro II era rei, não era índio não. Ele que casou com Princesa Isabel que era índia. Princesa Isabel, na história do povo, ela era daqui.
Aqui os índios viviam aí pelo mato. Os índios ganhava menino aí em qualquer lugar. E tinha uma ara (um passarinho) que comia os meninos. Aí o povo não estava rendendo. Toda vez que a mulher ganhava um menino, só era chorar, a ara vinha e comia. Porque não tinha casa, ganhava na moita, igual bicho do mato. E os índios pelejava, pelejava, e não matava a ara. As armas eram badoque, flecha. Aí chegou esse homem, aí os índios contou o causo do passarinho que comia os meninos. Quando eles estavam conversando, aí uma mulher já estava ganhando o menino. E quando olhava, já vinha o bicho cantando: “Uá, uá, uá, uá”. Olha lá já vem o bicho comedor dos meninos. E ele disse: “Pode deixar vir que eu vou matar!” “Moço, será que você mata mesmo?” Ele estava com espingardinha e matou o bicho. “Moço, como você matou esse bicho com essa espingardinha?”. Aí todos ficaram felizes e alegres. “E agora como vamos pagar o senhor?” “Não, não quero nada, não”. “Quer sim. Pode escolher uma dessas índias aí. A que o senhor achar mais bonita, o senhor vai levar”. Aí deu ele uma índia. “Agora é uma coisa que eu vou dar para vocês. É o documento dessa terra”. Aí junta com a princesa Isabel e vai assinar o documento. Ela que assinou o documento. Aí foi para Matias Cardoso e fizeram esse documento. Januário Brandão era um cartório que tinha lá. Foi registrada a doação em todos os cartórios. Eles foram registrando. Até em Itacarambi era registrado. Ai Dom Pedro II saiu com Princesa Isabel e foi para uma escravidão de negro. E chegou lá e disse: “Quem quer sair dessa escravidão? Eu vou liberar vocês. Tenho um lugar para levar vocês”. Vixi, os negros todos doidos. Aí trouxeram os negros para aqui, junto dos índios. Os índios não tinham enxada, ferramenta, não sabiam trabalhar, e foi por isso que os negros vieram para cá. Veio negros e negras e os índios não quiseram mais casar com os índios, queriam casar só com os negros, porque os negros eram espertos, sabiam trabalhar. Foram eles que ensinaram os Xacriabá a trabalhar. Colocavam a roça pequena, mas plantavam de tudo, e eles trouxeram as ferramentas.
- QUAIS ERAM OS TIPOS DE DOENÇAS E OS REMÉDIOS QUE CURAVAM?
De primeiro não tinha essa doençada que hoje tem. Nesse tempo, nem essa doença de gripe não tinha. A doença que era mais perseguida era a epilepsia, sezão, sarampo, caroção, catapora, eram essas as doenças mais perigosas, matavam mesmo. Aí o remédio que cortava a sezão era fedegozão com pucumã, não tinha essas outras não. Os remédios nossos eram só remédios do mato, a não ser a querosene, ruão e carmelão e a jalapa. Mas no mais era tudo do mato. Mas esses mesmos tem aqui no mato. No Custódio tem muita jalapa.
- QUAIS OS TIPOS DE CONFLITOS QUE TINHAM AQUI DENTRO?
Naquele tempo não tinha isso não. E quando acontecia era no Ceará pra lá. Era um absurdo, mas, no mais, não tinha. O povo bebia cachaça, tombava para lá, às vezes brigava de murro. Mas no outro dia ia lá pedir desculpa para o outro: “Eta cumpadre, desculpa, como foi que aconteceu isso cumpade? Foi porque nós bebemos demais”. Ninguém brigava por terra ou por outra coisa. Quando um tinha uma rocinha, queria mudar, deixava para o outro. Deixava até a casinha. Não tinha apuro de nada como hoje tem. O povo hoje está com uma ganância. Comia junto, fazia um quibê (feijão cozido com angu) e todo mundo comia. Quando matava um tatu, era dividido. Uma caxumbada de fumo era dividido no grupo. Dividia mandioca, milho, feijão. De primeiro, plantava pouquinho, mas o povo era todo unido. Hoje tem fartura, mas a ganância e a pestividade estão aí.
De primeiro, se tivesse um doente, eles ficavam juntos até ele melhorar. E se morresse, eles ficavam juntos até os sete dias.
- QUAL ERA O TIPO DE TRANSPORTE?
O transporte era o russinho. Eu mesmo não tinha nenhum jegue. Quando ia sair, dizia, vou lá pra fora. Mesmo de uma aldeia para outra. Carregava algodão e a mamona na cabeça. O transporte eram as pernas. Carregava algodão e a mamona para comprar o sal e outras coisas. Mas ninguém quase não importava com o sal não. Comia era sem sal mesmo. Também as pedras eram desse tamanho, mesmo tendo o sal, as mulheres não conseguiam quebrar. E aí comia assim mesmo. Comprava o sal era de quarto e libra.
- TINHA DOCUMENTOS PESSOAIS?
Quá, que documento! Ninguém tinha documento não. Por isso que eu ainda não aposentei até hoje. Quando eu batizei, já tinha uns 15 a 18 anos, e quem que sabia que ano certo que eu tinha... Fizeram assim, no rumo. E eu pensei que estava fazendo a coisa certa. Até hoje estou novo. Os mais novos que eu já aposentaram e eu estou aí. De primeiro, ninguém sabia nem contar o mês e ano, não sabia de nada.
Quando uma mulher tinha um menino e outra pessoa perguntava que dia nasceu, falava que foi o dia que a porca de fulano pariu. Quem vai saber? Comparava.
- QUAIS OS TIPOS DE ALIMENTOS QUE COMPRAVA E ONDE COMPRAVA?
Aqui, nós, quando as coisas faltavam, a gente ia pra Missões comprar ou em Itacarambi. A alimentação que nós mais comprávamos era o sal e o café. Arroz, ninguém nem falava nisso nesse tempo. Rapadura também não comprava. Temperava mais era com garapa, que cada um plantava, um pedacinho de cana para temperar o café. Temperava também com mel de abelha. Quando eles arrumavam um dinheirinho, era mais para comprar um pedaço de algodãozinho para fazer roupa. Levava o algodão naquele tempo, diziam negociata, mas era trocado pelo sal, o café e a roupa. A gente usava mais era bogaliana e algodãozinho, chamado algodão alvejado. Sapato, ninguém nem falava, a gente ia era com o pé no chão mesmo, ninguém não importava não. Ninguém tinha o costume de usar esse trem não.
- E OS CASAMENTOS, ERAM NO PADRE OU NO CARTÓRIO?
De uns anos, de 60 para cá, o povo deu para casar no padre, que o padre andava a cavalo na reserva e achava aí algum lugar. Um finado Noliberto no Riachinho, o padre na época dele ia umas vezes na casa dele casar e batizar. Uns do Riachinho batizou no padre Zé Ramirinho. Veio no Riachinho na casa do finado Noliberto, que era o avô de Joaquim, que era o tio nosso. Era tio da minha avó. Era os caboclos mais antigos. Ele também era liderança naquele tempo. Naquele tempo que ele veio na casinha, veio batizar debaixo do pau lá. Veio celebrar umas missas lá no Riachinho. O primeiro cemitério é o do Riachinho, daqui da reserva, o primeiro cemitério foi esse. De primeiro morria pessoas aqui e levava as pessoas pra enterrar em Missões. Passava tudo aí na redona. Tinha um pé de pequi, chamava “descansa a rede”, e tinha outro que chamava “descansa a reida”. Já tinha os pontos de parada. A não ser aqueles que eram os maldosos, que enrechava com eles, esses enterrava cá mesmo, dobrava e colocava no pote. Índio mesmo e branco que entrava, eles pegavam e davam remédio para embebedar, aí dobrava e colocava dentro do pote com o fundo pra baixo, mas eram os que queriam invadir. E os que andavam também batendo com a língua nos dentes, eles faziam assim também. Se visse, tinha que ficar calado. Esses eram os crimes mais perigosos que tinha de primeiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário