Sou Maria Aparecida Nunes Barbosa da etnia Xacriabá. Moro na aldeia Barra do Sumaré II, município São João das Missões, Minas Gerais. Sou professora há 15 anos na minha aldeia. Sou estudante universitária da UFMG.

Há 3 anos que faço pesquisa sobre conflitos e sobrevivência do povo Xacriabá e municípios vizinhos, antes dos anos 1970.

Pensei em criar esse blog para divulgar meu trabalho e de outros colegas e dar oportunidade para outras pessoas conhecerem um pouco sobre as histórias do nosso povo, que a maior parte está só na mente dos mais velhos que eles estão levando com eles.

terça-feira, 12 de abril de 2011

ENTREVISTA D. GUARDINA GOMES DE OLIVEIRA


ENTREVISTA D. GUARDINA GOMES DE OLIVEIRA
Idade: 56 anos
Aldeia: Barra do Sumaré



Antigamente a gente comia era comida de milho, a gente pesava no pelação, fazia angu, farinha, beiju, bolo... Essa era a nossa comida de primeiro. A comida era canjica graúda, que nós, de primeiro, que nós chamava de canjicona, agora é canjica graúda que os povos trata, que a canjica miúda que pisava o milho, tirava a canjica para comer, esse que era o arroz que nós achava, nem conhecia o arroz.
Quando tinha o feijão comia, quando não tinha, a gente comia o beiju, cuscuz, comia o que o povo tratava de Mané, mane era o bolo.
A roupa, a finada mãe, no tempo dela, tecia, ela fiava na roda e tecia o pano. Aí os fio ia vestir. O que hoje o povo faz de pano, antes era de linho a blusa que ela fazia pra vestir. Nós caía dentro dos vestidão, saía rastando pra festa, o sapato era o pé no chão. O sapato que nós achava era cinco dedo no chão, todo mundo conhecia os rastros dos outros, só por rastro conhecia.
A cama era de vara, cortava as varas e botava os ganchos de um lado e de outro, aí era a caminha. A esteira, fazia de palha de banana. Hoje ninguém conhece isso mais, não é? Fazia de palha de banana pra dormir. Quem tivesse a coberta que tá que tecia embrulhava, quem não tivesse tinha vez que jogava aqueles pano em riba, a mãe tirava a saia, não dava pra tudo. Os outros embrulhava era com os paninhos pr’ali e cortava assim mesmo.
O sabão, ninguém nem conhecia sabão de comércio. Cortava os paus, fazia a cinza, botava fogo e ia lá no mato pegar pinhão, tingui, e fazia o sabão na panela. Fazia a estiladeira, ressava a cinza e fazia o sabão pra lavar roupa. Esse que era o sabão de nóis de primeiro, que era desse jeito.
Num tinha médico, então quando a pessoa doecia, saía caçando pau nos matos, rancando raiz daquelas árvore que dava pra gente ver que as pessoa melhorava, passava a febre, passava a dor, aí se a gente via que não tinha jeito, aí não tinha médico, Deus levava. Assim que era.
Eu mesma tive 19 fi’i. No tempo, eu tive 16 e mais 3 fora do tempo. Por quê? Porque num tinha médico mó de cuidá, eu ia era nos raizeiros, dava um remedinho, uma hora miorava, outra hora não miorava. Deus repartiu, eu fiquei com oito, ele levou oito, o que eu ia de fazer?

  • PARA COMPRAR AS COISAS, COMPRAVA FORA, OU ERA AQUI MESMO?
Comprava aqui mesmo, porque nem ninguém sabia onde era o comércio. Compra aquele mais recursadinho que morava aqui na mata, nós comprava na mão do finado Vicente, que morava aí no Sapé, nós comprava trabalhando, o homem faltava morrer de trabalhar, chovendo ou sem chover, era trabalho. Tinha vez que trabalhava a mó de trazer na mão um pratinho de coisa, um quilin na mão, assim um dia de serviço, tinha vez que trazia um pratinho de farinha, uma banda de rapadura, uma rapadura num dia de serviço! Os filho tinha vez que tava tudo aí com fome. Tinha vez que meus filho, quando não tinha milho pra quebrar o jejum, ficava aí, “Mãe dá um taquim de beiju! Cadê o beiju?!” “Pois se não tem mio, seu pai está trabalhando ainda, vai chegar de noite”. Quando o pai chegava dava graças a Deus mó de trazer ao meno a rapadura pra botar na mão dos fios, cada um, um pedacim de rapadura pra comer chorando, a barriga só a casquinha. Eu digo que hoje o povo tá tudo de barriga cheia: “eu não quero, não tem molho por riba, não tem carne” eu fico assim, assuntano. Tinha vez que dava de mamá criança, o peito estava seco, jogava o peito parecia que estava puxando o coração da gente, não tinha leite, aquela ança que dava na gente. De premero era um sofrimento. Hoje está bom, os povo acha que tá ruim. E tem gente que, a gente olha assim, ave Maria, é uma pança, a gente mesmo está vendo como era e como ficou. De premeira era coisa viu!

  • COMO COMEÇOU OS BRANCOS AQUI DENTRO?
Começou porque nós era os índios e o governador era o finado Rodrigues, ele foi abatendo, abatendo e foi tomando conta devagar até tá dando pra entrar aqui dentro da área, mas o pedido dele foi para não deixar entrar, mas tem o dizer que o governador, Deus levou, e ficou mais fraco.
Os premeiro fazendeiro, o premerinho, foi Juca Martinzão. Foi o premeiro. Juca comprou o terreno ali dos lado dos Sales e vendeu assim de lá daquela gratona lá ó! Certo no brejinho pra cá. E não podia porque aí era o nosso terreno. Aí quem combateu foi o finado Rodrigue e compadre João também combateu, aí deu briga e deu morte. Eles pegou e jogou um tanto de gado e foi rebentando tudo o que a gente tinha, e aí depois Iaiá ajudou, Iaiá a onça, a Iaiá Cabocla nossa. Ela deu uma sangrada num bocado aí, bebeu o sangue e largou só um montão de folha. Matou um bocado, eles assobiou ô e saiu e cascou debaixo, saiu de repente, pegou o gado e saiu tudo, porque aqui, se a pessoa não souber, ela acontece mesmo é! E depois aí foi virando essa briga entre os povos, uns entraram e acompanharam, outros não acompanharam. Depois acabou dessa forma. Os posseiros eram os mais ricos e os remanescentes eram os mais pobres.

  • A SENHORA SEMPRE MOROU AQUI? E OS SEUS PAIS?
Só aqui. Eu mudo de lugar na mesma aldeia. Nunca mudei de aldeia não. Meus pais são da mesma aldeia. A mãe de mãe foi pegada de cachorro, acho que morava no rumo de Riachão, aí eles vieram pra cá. A vó dela pegou no mato de cachorro, disse que botou no cavalo, que ela rasgou assim na garupa do cavalo, rancou um tampo, só o osso, era índia braba.

  • E AS ROÇAS, COMO ERA O JEITO DE PLANTAR E POR AS ROÇAS?
Antigamente era de madeira, punhava as roça com a mesma madeira, cercava pra plantar, ia derrubando assim os paus, uns por riba dos outros para dar faxina. Plantava as mesmas coisas de hoje, abóbora, milho, feijão, mamona, arroz, algodão. Agora a gente planta, mas não dá mais porque a chuva encurtou, quase nem um milho está dando mais, no lugar baixo sai, mas nos alto não sai.

  • A SENHORA SABE DE MITOS COMO O DA IAIÁ CABOCLA?
Eu só sei dizê que uma vez a finada (minha mãe) encomendava nóis para não agravá a onça. A onça cabocra que é a Iaiá nossa. Porque se agravá ela, ela aparece pra gente e ela bate. Bate, dá uma surra. Dizem que ela é uma onça maiada, amarela. Um cara lá no Brejo disse que não tinha medo dela não, ela veio de noite e meteu o chicote, quase mata o menino. Ele veio e encomendô nóis.
Dizem que todo dia ela vai numa área e vai na outra, onde tem as aldeia ela vai, vai encantada. A aldeia também, quando ela chega na aldeia, nós sabe, ela dá um assubio, bem forte, né? Você ainda não escuto, não? Agora ficô mais difícil, depois que o finado (Rodrigão) morreu, ficô mais difícil um pouco. Quando ela chega aqui na área nossa, nós sabe, ela assubia aquele assubio bem altão, FIUIIUUU.......

  • AS PESSOAS DE ANTIGAMENTE TINHA DOCUMENTO?
Não, era tudo sem documento. Até hoje, tem alguns que não tem. Eu mesma casei no padre, agora que estou tirando documento do civil. Todo mundo casava só no padre, desde os antigo. Depois, com o engano de negócio de civil aí, eu fui me apusentá. O finado Rodrigo disse que não precisava não, aí eu consegui assim mesmo casada no padre. Nunca deu problema não. Agora que eu consegui, depois dos dentes tudo caído. (risada)

  • E SOBRE A CRIÇÃO? COMO CRIAVA E QUE TIPO?
Criava galinha, porco; gado nóis não criava, começô criá agora, mas num passa de duas cabecinha. (risada). Não existia cercado, criava só nos mato. Cada aquele criava solto nos mato. Só ponhava a rocinha, prantava e pronto. No lugá que prantava, prantava dois, treis, quatro ano. Hoje pranta um ano e já não qué mais. Por isso que a mata acabô. A mata pranta um bocado de ano num lugar sozim. É. Não prantava capim e nem tinha criação.

  • E AS CASAS, QUAIS OS TIPOS DE CASAS?
As casas era de vara. Ponhava um bolo de barro nos buraco das vara. Quando passava dois anos, os buraco estava enxergano lá naquele mundo. Os buraco era os pequeno (risada). As porta era as vara mesmo que era as porta. Media as vara nas porta, tapava as porta de pau. A coberta era casca do mato. Hoje o povo derrubou as casca tudo. Aí deu pra fazer telha e por de riba. Era de casca. Nós mesmo tinha era de casca de pau do mato. Não é de qualquer pau não. É pordaco. Limpava ela, rapava ela, aquela casca de riba pra ficar de duas. Abria o buraco no meio e marrava as vara pra não arribar. Ponhava uns pau por cima pr’o vento não carregar. Mas aturava tanto! Quando acabou esses pau, a gente assombrava de por telha em cima com medo de cair de riba.
De primeiro, era ruim. Você tinha uma criança, caçava um pano pra enrolar, não achava. Tinha veiz que vestia uma roupa aqui e tinha que ir pra fonte lavar correndo pra vesti. Hoje tem roupa: “Eu não quero essa não!”, “Eu quero é outra nova!” Eu é que num vou bater folgado. A gente sofreu mesmo...

  • AS ROUPAS, ERA A GENTE MESMO QUE FAZIA?
Roupa e chinelo. Era todo mundo de pé no chão. As mulher fartava morrer de dor nas pernas, de dieta e de pé no chão. Não tinha nenhum tipo de chinelo. Algum que tinha, uns tamanco de pau, era um chinelo de taba, e os homens aqueles de couro de gado. Pegava e cortava assim, certinho, cortava e furava, botava umas correinhas e saía piriri-toc, piriri-toc (risada). Ainda era de couro cru de gado e os outros que não sabia, ficava de pé no chão.

  • AS COISAS DA ROÇA, LEVAVA PARA FORA PARA VENDER?
Não, era tudo pra casa, pra comer. Quando matava um porco, era espiticar (dividir) pr’ os vizinho. E quando os vizinho matava, dava também. Hoje, que acabou isso (risada).

  • PARA VIAJAR, TINHA ALGUMA COISA DA NATUREZA QUE MARCAVA A HORA?
Era pela natureza a hora. Era o galo (risada). A hora que o galo cantava era uma hora. E de dia, a gente marcava no sol. Hora que a gente pisava na cabeça da gente, era meio dia (risada). A chuva de primeiro, chuvia muito. Tinha as simpatias, ponhava nas fogueiras aí, a gente já sabia. Quando estava no mês de junho, tinha a marcação de Santo Antônio primeiro. A profecia de Santo Antônio passava pra São João e São João entregava pra São Pedro. Aí a gente pegava naqueles mês. São João marcava o mês de outubro, novembro, dezembro, janeiro e fevereiro. Aí São João entrega pra São Pedro.

  • NOS TRÊS FERIADOS FAZIAM AS MESMAS OBSERVAÇÕES?
A marcação é tudo assim. Aí, a gente vai olhando pelas nuvens. A marcação do mês de outubro, as nuve fica carregada chamando no chão do chovedor (no horizonte). O dia do dia primeiro, aí vai pra frente, os outro santo. Se tiver nivuado, chove. E se não tiver, não chove no meis. Esse ano mermo, foi marcá mermo foi no final d’água. No fim d’água vai ser mais mió. Assim mermo, vai ser chuva raleada. Março, abril e maio marcou mais chuva. De primeiro, o povo já tinha a marcação, depois entrou num mundo novo. O povo que põe a marcação, mas o mundo é mesmo que Deus marcou, e disse que tem o mundo novo, aí ficou diferente. Deus disse agora que o mês que era de chuva, diz que é seca. Aí vira as água. E as água vira seca. Agora ninguém vai saber como é que vai ser. Diferençou mermo. Cadê? Muitas coisas a gente já está vendo mermo, está certim.

  • AQUI NA ALDEIA A GENTE TEM UMA PARTE DE NEGRO E UMA PARTE DE ÍNDIO. A SENHORA SABE COMO É QUE FOI ESSA MISTURA? COMO É QUE OS NEGROS CHEGARAM AQUI?
Ele entrou dentro da área e foi casando uns com os outro e foi virando uma mistura de negro. Tanto que tem um bando de nego e tem caboclo. E virou uma mistura, uns tá apurado, os outros já num tá.

  • DESDE ANTIGAMENTE QUE ESSE NOME ERA XACRIABÁ MESMO OU TINHA OUTRO NOME?
Uai, esse é o primeiro nome de nós. Nós tratava era de FUNAIA, aí inventou esse outro nome. Tem uns que fala que era Gamela (o nome anterior ao nome Xacriabá, esse último dado pela FUNAI), mas eu conheço gamela era de secar fubá, ou prato pra gente comer. Prato de barro, panela de barro, mãe fazia panela de barro, prato, xirquinha pra nós tomar chá, café, tudo ela fazia.

  • NÃO TINHA NADA DE PLÁSTICO E DE ALUMÍNIO?
Não, não tinha não. Nós só comia nessas coisas assim de madeira e de barro. E a gente gostava, iihh! (risada)

  • ANTIGAMENTE FAZIA FARINHA DA RAIZ DE UMBU?
Quando a gente tava com fome, que não tinha nadinha, só via desgravatando os pé de umbu pra fazer farinha. Mandioca, pai relava. A mandioca tava cheinha d’água. Espremia aquele trem fofim, fazia aquele grolozão. Não saía farinha não. Era o grolão, o bolo desse tamanho, já era pra comer. Botava no prato, se tivesse feijão, ponhava. Se não tivesse, comia o bolão com sal (risada).Êta Deus! A gente de primeiro sofria muito um bocado.

  • NESSE TEMPO A COMIDA ERA ASSIM E OS MENINOS PEQUENINHOS, ERA SÓ NO PEITO?
Era no peito e fazia mingau de fubá de milho. Só dava só disenteria, menina (risada). A metade dos menino meu, não vou mentir, só dava disenteria e dilatação, sabe? A gente dava remédio mais remédio, tinha veiz que dilatação, desnutrido só de fome. A morerinha (moleira) chega a um pilãozinho fundo de fraqueza. As veiz, o leite da mãe não dava. O dia que a gente comia qualquer coisinha, dava um leitinho, o dia que não comia, oh, meu Pai! Pobre de eu, sofria um bocado. Ainda mais eu que tinha os peito doente. Minha irmã quase não dava leite não. Comia só o mingauzinho. Com quatro méis, já machucava aquela comidinha pra botar pro menino comer. O menino pelejava fazendo vampim (vômito), pois era pra engolir (risada). Hoje o povo anda criando as criança tudo bem criada, né?

  • E O CAFÉ, COMO ERA PARA FAZER?
O café, ia lá e cortava a cana tá tá tá. Com o pau, trucia na vazia, cabava, estemperava, botava mais água, fazia o café e bebia. Hoje, cadê? Ninguém faz mais isso.

  • MAS ERA CAFÉ NATURAL?
Era de verdade! Nós torrava o mio, misturava e pisava o mio junto com o café. E tinha o café fedegoso. Também tinha o fedegosão, que era aquele café beirão. Mãe prantava minha fia. Torrava aqueles cardeirão, pisava pra fazer este café. Eu mermo que não gostava. Fedô (risada)! O fedegoso, quase não gostava não. A mãe do finado Zé Caetano que torrava o café, de noite. Com vinte e quatro hora, a muié ainda não bebia água. Minha irmã ainda saía rebuçada, lá pro meio dia. Por isso que eles aturou mais. O fiapo do cabelo do ouvido quase dava uns dois dedo. Foi crescendo, êta meu Deus do céu (risada)! Tem tanto coisa pra gente pensar que a gente esquece!

Nenhum comentário:

Postar um comentário