Sou Maria Aparecida Nunes Barbosa da etnia Xacriabá. Moro na aldeia Barra do Sumaré II, município São João das Missões, Minas Gerais. Sou professora há 15 anos na minha aldeia. Sou estudante universitária da UFMG.

Há 3 anos que faço pesquisa sobre conflitos e sobrevivência do povo Xacriabá e municípios vizinhos, antes dos anos 1970.

Pensei em criar esse blog para divulgar meu trabalho e de outros colegas e dar oportunidade para outras pessoas conhecerem um pouco sobre as histórias do nosso povo, que a maior parte está só na mente dos mais velhos que eles estão levando com eles.

terça-feira, 12 de abril de 2011

ENTREVISTA COM DONA ADELÁIDE

ENTREVISTA COM DONA ADELÁIDE
DATA 08\08\08
IDADE: 78 ANOS
ALDEIA: ITACARAMBIZINHO
...
De primero, nós usava prato de pau, outra hora era umas foia e esculatera de barro. As panela furava tudo, oh menina. Mãe comprava umas panelona assi bem grande pra cozinhar de comer pr’os fi’i comer. Mesmo era só dois. E ela enchia essa panela cheiinha de comida. Foi um dia, ela botou e tocou carne nessa panela e tocou arroz dessa carne e a panela furou o fundo! Êta, que nós já rimos... Agora deixa o que está no casco da panela e vamos comer o que tá no chão. Pois é, tem um bando de coisa...


  • A MÃE DA SENHORA É NASCIDA NESTA MESMA ALDEIA DA SENHORA?
Minha mãe é nascida no Riachinho e eu também sou nascida lá. É tudo de lá, meu pai também e minha mãe de criação, foi nascido tudo por lá. Mas essa é a mãe de criação. Se você quer saber é da mãe mermo, da mãe da gente, é tudo de lá.

  • E COMO ERA A COMIDA DOS ANTIGOS?
Pois é, é farinha de raiz de imbu. Essa mandioca que o povo trata de mandioca de onça, mãe (mãe adotiva) rancava aquele tanto e é o mermo que vê mandioca de castelão. Relava, mudava de cor. Ela é meia amarela né? Relava, relava, tirava aquela água, assentava aquela tapioquinha e ali misturava aquela colinha. Colinha besta. E fazia aquele beijuzinho e nós comia. Relava coco de tucum, mãe partia aquele tanto relando o coco de tucum e fazia farinha pra nós comer.

  • ESSA MANDIOCA QUE VOCÊ FAZIA A FARINHA ERA MANDIOCA NATIVA?
É nativa. Até hoje ainda tem ela. Lá no Sô Nininho tinha um pezão. Eu não sei se cabô. Mas aqui na mata tudo tem ela. A raiz de imbu, mãe rancava aquela raízão, aquela batatona, descascava e relava pra nós comer beiju assim. Ah! Nós comia era jatobá, coco, outras capoeira. É. Nós comia mais coisa, nós comia muita coisa, só o que eu sei. E o que eu não sei? Que nós era tudo pequeno, né? Cabeça de coco dos gerais, coco cabeçudo, nós comia muito! Assim era a comida dos povo antigo.
Outra coisa é a taioba, que até hoje a gente come. E inhame. O ponto é achar. Eu mermo, se eu achar, eu como. Mas parece que esse inhame do mato cabo, e eu não sei como é que ele cabô. É uma comida boa, o inhame enxuga. Ele é bom porque ele não coça. Ele é nativo, de toda a vida nós come. Pipoca de mi’o torrado, nós pisava e comia, torrava o mi’o. Eu como até hoje.

  • E NÃO COMPRAVA COMIDA?
Não, não tinha nada aqui não, só tinha no comércio, que era quem pudesse ir lá comprar. Quem pudesse ir lá comprar, comia, e quem não pudesse não comia. Não tinha cavalo, não tinha jegue, não tinha nada. O jegue e o cavalo era esses aqui ó (mostrava as pernas dela). Quem podia ir lá buscar, buscava, quem não podia...

  • PLANTAVA ROÇA COMO HOJE OU ERA DIFERENTE?
Plantava roça que nem hoje, nunca deferenciou. O prantá da roça era um sozim. Pranta mi’i, feijão, abroba, muranga, melancia. Só que era mió, que dava bastante. Ocê trabaiava mais pouco e coía um bando. Óia, de primeiro, cê prantava um prato de feijão e coía um saco. E aconteceu comigo. Depois que eu cheguei aqui mais Sinhá, nós prantamo uma roça. No primeiro ano, ela prantou um prato, eu prantei outro, ela tirou um saco e eu tirei outro. Tá de pouco tempo que acabou. Agora nós bate prantando, mas não cóie nada dessa vida, mais é trabaio, né? Se coiê pra provar, ainda dá graças a Deus. De primeiro, o tempo era bom. Ocê matava um gado, a carne era boa. Hoje, ocê mata um gado, ocê come que é o jeito. Cê matava um porco, cê não comia osso do porco, ocê só tirava a carne por riba (risada).

  • E CRIAVA MUITO?
Criava. De primero, criava bastante coisa, porque não tinha esse negócio de cada um ter o seu. Tudo era vasto. Tudo junto. Era vasto, gado solto pro mato. O dia que queria dar o sal ao gado, ia e chegava e jogava o sal, e tudo comia. Não tinha isso de dizer “esse é meu e aquele é seu”, não, não tinha isso não, tudo era junto. O lugar onde você interessava, você fazia a casa e botava a roça. Não tinha esse negócio e dizer que esse é de fulano. Você ia trabaiá onde interessasse. Hoje não. Tá ruim.

  • DE PRIMEIRO, TINHA BRIGA COM OS BRANCOS?
Não. Não tinha esse negócio de branco aqui não. Não tinha branco aqui dentro não. As pessoa era pouca. Pro’cê ver, na casa do vizinho, ocê saía hoje, ocê ainda dormia no caminho. Pro’cê ver, a chegar na casa dele, ocê ainda dormia de riba do pau, pra onça num te comer. Era assim, era longe, não tinha ninguém não. Não tinha mistura com branco. Os branco não tinha misturado com os índio, ninguém nem sabia o que era negócio de branco. Tá sabendo agora. De primeiro, era tão bom que num tinha mistura. Eu vim conhecer essa mistura depois que eu vim pro Brejo. Aqui não tinha mistura não, os índios eram separado. É tanto que o finado Gerome e o finado Pedro era caminhador pra Brasília. Finado Gerome, quando ia pra Brasília, ele ia lá pra casa.
“É meus fio, eu vou passar a noite mais ocês”.
“Ocê veio, Tio Gerome ?!”
“Vim! Ah, vou lá pra Brasília, eu vou resolver um negócio lá pra nós. Que o negócio está querendo apertar pra nós. O povo tá querendo tomar as terra nossa. Os branco quer entrar meus fio.”
“Nossa! Mas os branco vão entrar na terra nossa?”
“Vamos arrastar é a barriga no chão pra mó de branco não entrar nas terras, porque se eles entrar aqui, as correntes vai arrastar! Mas com fé em Deus, as corrente não vai arrastar nas terra de índio não. Se eu morrer, Pedro fica no meu lugar.”

Você conheceu o véio Pedro? Você conheceu ele. Pedro aí do Sapé. Pedro de Gerome. Ele morava bem ali, onde o Chicão está morando hoje. Cê conheceu Morrão? Morador daquele Gerais lá, num era? Moço! De primeiro que era bom! Se fosse que nem de primeiro: “fulano vamos fazer uma casa pra acolá?” Lá mesmo fulano faz a casa e bota a roça. Hoje é uma encrenca. É uma maior encrenca que tá. Tá uma encrenca danada. Ocê não pode, nem pra tirar um pau na terra do outro, não pode tirar. Porque se tirar, você tem que pedir o dono. Se o dono deu, bom, se não deu... Se precisar, se não precisar, cada um tem o seu. Ou ruim ou bom, mas tem. De primeiro é que era bom. Era bom, mas era bom mermo! Que não tinha essa encrenca assim de matação de gente não.
De jeito nenhum. Nem briga não tinha. Eu lembro que nem briga não tinha. Óia, eu vim conhecer esse trem foi uma vez que o finado Miguel morava em Varge Grande. Aconteceu isso. Isso aí eu lembro bem. Que o finado Miguel foi numa festa de Santa Cruz lá no Cabano e, de lá pra cá, ele veio mais o compadre dele, mais o Antônio de Josia, que morava aí nas Caraíbas, e o Antônio do outro lá, esqueci o nome do home. Foi ataiá no caminho que já vinha embora, aí o Miguel foi falou assim: “Cês tá aí conversando, deixa eu ir embora, eu tô com sono, eu vou-me embora”. Aí, ele olhou pra trás: “Vão bora companheiro!” Que ele olhou, só viu faca clareando. Disse: “Meu Pai do Céu! Que é que eu vou fazer? Será que eu vou voltar lá?” Aí ele voltou lá. Tava um de lá, outro de cá, todos dois quem nem galo. Aí ele foi atravessando no meio e disse: “Me atende compadre, me atende compadre!” Quando ele falou assim, o compadre tacô a faca nele. Aí ele caiu do burro e foi pro brejo. Foi a primeira vez que eu vi isso. Nunca tinha visto. Bom aí vimos embora aqui pro Brejo. Inteirô duas com aquele menino, um menino besta que tinha aí do véio Pedro cachiado. Pra ele mi era besta, todo mundo dezia que ele era besta, pegaram o pobre do menino e mataram. Nos já morava no Brejo, eu digo: Ué! E já viu matá gente?! Gente mata é bicho, não é gente não, daí o povo seguiu. Ô! Agora, porquê? Porque o povo rendeu demais, e tá tudo muito locéia, e tá desobidiente, tá muito desobidiente.
Mas de primeiro era bom, um fazia uma festa e saia avisano ocê, aí agora quand’ocê chegava naquela festa, ô! maió alegria, ocê comia, tomava café a noite inteirinha, i i i! Esse povo dançano, dançava um lundu, era lundu, não tinha essa coisa não de rasta pé não, era lundu, era um samba, aí assi a noite inteirinha, só tomano café e comeno o que tinha. Ali agora o sol saía e ocê tombém até que isquecia. Era aquela harmonia, até uma hora dessa, o povo tava sambano, que era bom. Hoje a gente tem medo até de fazer uma brincadeira, é! Ah! Tempo bom! Ainda arcansei uma beradinha ainda, arcansei uma beradinha do bom, e do ruim. (risada). Mas Deus ajudou que eu passei, Deus que não deixa, meu pai, vim esse tempo mais não que eu passei, passei muita necessidade, é! Passei muita necessidade.

  • E NAQUELE TEMPO TINHA APOSENTADO, GENTE QUE GANHAVA SALÁRIO?
Não, não tinha nada, de jeito nenhum! Não tinha nada.           

  • E QUEM IA COMPRAR NA CIDADE, COMO COMPRAVA?
Comprava trabaiano na roça, quando ganhava as coisinhas; pegava e vendia e ia comprá lá. Plantava arroiz. Nós prantava muito arroiz lá nas lagoas; coia bastante arroiz, jogava arroiz no pilão, pisava aquele arroiz levava pro comércio.

  • CHEGANDO LÁ, VENDIA A DINHEIRO OU TROCAVA?
Vendia é a troco, trocava a troco de café, sali, outras coisinhas se tivesse precisão. Quem tivesse precisão ia panhá lá, toicin nóis levava era de cá. Hoje nóis vamo panhá lá. Tá veno como que as coisa é! Mudou muita coisa. Era assim, era no braço, o pobrizin dos veín só fartava era morrê minha fia, de tanto trabaiá, só que tinha uma coisa, quando aquele vein chegava a arriá que não aguentava mais serviço já tinha gozado, comia bom, né! Criava porco, criava bastante coisa, cabra, carneiro, as porta da varanda dos pobrezin vivia aquele bando de coisa, porco, tudo aí pus chiqueiro, era assim. Hoje tomo comeno tudo do comprá, panhano no comércio e comprano. Hoje tá bom. Ô! Lá pra baixo tem venda, lá de junto d’ocê tem uma venda, aqui de junto de mim tem outra venda, vão meu fio, vai compra lá, de repentinho o menino correu e comprou lá. De primeiro não tinha isso não minha fia. Ninguém achava menino para panhá não, porque era no Itacarambi, Januária e na Manga, era assim, e era se guentasse ir, se não guentasse, ficava aí memo, era assim, desse jeito.

  • E TINHA DOCUMENTO PESSOAL?
Não, não tinha documento não, era tudo aí como uns bichinho, eu memo não tinha documento não, eu vim pegá documento depois que casei. Ninguém sabia o que era isso de documento. Pai dos menino não tirava data de menino (data de nascimento) era como saía, uns bichin aí, uns pinto do ovo aí, não tinha nada disso não. Hoje não; até os bichim tá registrano. Minha gata memo é registrada, tem documento (risada). Não é memo! Hoje até cachorro tem documento!

  • A SENHORA SABE CONTAR A HISTÓRIA DO DOCUMENTO DA TERRA, DA DOAÇÃO DA TERRA?
Ô minha fia, isso aí já não conto com a cabeça não.
[Tem uma história de que foi Dom Pedro que deu a terra, a Princesa Izabel.]
Isso aí não, aí não sei; aí é outras pessoa. Seu pai sabe. Já sobre isso aí eu não sei não. Do que que serve eu falá pro’cê que sei, mais eu não sei, né! As outras coisa tudo eu sei.
Os candinheiro nosso era de barro, nóis enfiava uns pauzim assim na parede, fazia os candinheiro de barro ô, as luiz nossa tudo era assim deferente, era de momona, nóis pisava a momona e tirava o azeite e botava nos candinheirim, fazia o pavi e enchia de azeite e botava lá pra lumiá nóis. Conde não tinha o algodão, enfiava a momona tudo assim no talim e enterrava o pezim no chão para lumia. Nóis sofria, de primeiro não tinha as candeia. Hoje nós tomo é no céu. Hoje tem tudo, o que nóis qué mais! Ah! O povo sofreu foi de primeiro. Eu sofri é quando pagava essa candeinha, conde vinha uma chuva de vento de noite pagava tudo, agora aí, cadê? O vento pagava tudo agora, aí ficava no escuro.
A casa nossa era de paia de capim, não tinha essa teia não, nóis não sabia o que era morá debaixo de casa de teia não. Morava era ni rancho assim ó. Era de enchimento; tinha hora que nem barro não tinha, metia era umas paia, era um paio (risada). Não era casa assim que nem essa não, era um paió memo de pô mi’i. Era assim. Não tinha cama para drumi, nóis deitava... Fazia uma caminha de vara, fazia as esteira e jogava em cima das caminha de vara.
Hoje não, o povo tá tudo com fidarguia, o povo ficou tudo rico. Ninguém vê que tem um drumino numa cama de vara, si um entrá na casa de um e vê um drumino numa cama de vara, só com uma esteira por riba, ô! Vixi,. mas aquele ali é maió inguinorança, é! É maió inguinorança.
Nóis remendava roupa nossa, era todo mundo, não era só nois não. Era todo mundo. As muié remendava as roupa delas, remendava roupa dos home tudo. Nós fiava no fuso ó, assim ô, aquele ali, ia tecer, pra mó de fazer vestido. Eu, depois que cheguei no Brejo, eu vesti um vestidão de algodão, Tonha vestiu outro, o veio vestiu uma camisona e uma camisona de algodão que nóis fiemo tudo no fuso, não tinha roda, nóis fiemo tudo no fuso. Ele ajudava eu a fiá, eu fiava a de urdi, ele fiava, a de tampá, era assim.

  • TINHA DOIS TIPOS DE LINHAS?
É, dois tipo de linha, a de urdi e a de tampá. A de urdi, ela vem pra cá, que é dura, e a de tampa vai pra cá que é mole. Olha que uma linha para guentá o peso de uma pessoa precisa ser forte, ainda bater o pé para tecê. Era bom era na roda, batia o pé até madrugada, aí era bom, mas depois que a roda quebrou, foi tudo pro fuso.
A cama faz como diz o outro. A cama era de tomba-tomba e a coberta era de lambe-lambe. Sabe o que é? É o fogo (risada). E o tomba-tomba, sabe o que que é? É o ramo (risada). Cindia o fogo, aí não tinha esteira, cindia o fogo aí, ia lá quebrava uns ramo, forrava os ramo aí na beira do fogo e deitava, aí agora ficava aí. Ô cosa boa, a quenturinha do fogo! A cama de tomba-tomba e a coberta de lambe-lambe. Sofri muito, minha fia. Não era muito assim não. Hoje não, o povo está é bom. O povo hoje tá tudo é rico. Muitas vezes eu corri de gente, sempre eu falo, eu tenho medo de gente, eu tenho medo de gente, mas sobre os assunto, se eu tiver desprevenida, todo mudo tem, ocê também, não tem? Nóis tudo tem medo, nóis tamo desprevenido, chega uma pessoa e não pode saí, aí tem que corrê. Corri muito. Eu e minha mãe, ficamo dentro de casa uma semana. Meu pai ganhando o dinheiro trabaiano. Olha, coitado, ganhano o dinheiro para vestir nóis. Ocê sabe como ele fazia? Meu pai saía cedin, no marelo do dia, saía e enchia duas cabaça d’água, botava aí pra nóis:
– Aqui pr’ocês ir fazeno a comida enquanto eu chego, eu venho cedo pra ir na fonte panhá água.
Todo dia porque nóis não podia ir na fonte pegá água, porque estava sem roupa (risada). Era uma varedona e vaqueiro só vivia encontrano, pegano gado no campo, e nóis ficava dentro de casa escondida, com as porta tudo fechada; era eu mais aquela Julinha lá da Rancharia, ela ficava lá mais nóis. Quando interava uma semana, já sabia quem ia na Januária; “meu padrin Cesáro vai pra Januária, vou pedi ele pra trazê as roupa pr’oceis”. Vixi, quando ele falava assim, nóis ficava sartano de alegre. “Que dia que a roupa chega??”(risada) Não podia ir no meio de gente para pedi pra cortá a roupa. Mãe toda vida tinha a cabeça ruda, e agora como é que faz mó de cortá essas roupa pra nóis. Pai falava: “eu corto pr’oceis, eu corto uma camisa e a saia”. Eu digo: “eu memo corto o meu”. Pai: “menina, menina ocê vai bota esse pano perdido”. “Eu não, pois eu já sei cortá”. Eu metia a mão no meu, cortava e costurava e pai cortava a camisa e a saia dela. Aí nóis ficava alegre. Agora nóis vamo pra fonte, vamo tudo pra fonte banha. Êta, coisa boa! De primeiro era assim.

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